quinta-feira, 30 de julho de 2015

Iñaron (2015)


Juliano Berko


(2015)
Todas as Letras e Todas as Músicas; Guitarras, Baixo, Bateria e Teclados (Piano Eletrônico 2.5), Vozes: Juliano Berko. Gravado entre Março e julho de 2015, Guará II, DF. Fotos (Capa e Contra-capa): Erupção do Vulcão Cabulco, Chile, abril de 2015. CD: “Hatüey”, índio lendário da América Central, em relevo no Capitólio de Havana, Cuba. Hasta la victoria, siempre!

Juliano Berko, 2015.

www.oversolanoverso.blogspot.com
julianoberko@gmail.com
youtube.com/julianoberquo
soundcloud.com/julianoberquo
061-85156753

Iñaron:

“Nosso tema é a narração e, no possível, a interpretação dos fundamentos sociais e mítico-religiosos das experiências de um índio Urubu que saiu à procura de Deus. As desventuras de Uirá que, em novembro de 1939, depois de uma série de desenganos, se matou na vila de São Pedro, no Maranhão, lançando-se ao rio Pindaré. [...]

Uirá não arrastou seu povo à sua aventura, nem foi, em qualquer momento, reconhecido como um profeta ou messias. [...]

Uirá era tão somente um chefe de família, um líder de sua aldeia. Certamente, mais emotivo que o comum, porque se deixou afetar mais que os outros por desventuras que pesaram sobre todos, mas só a ele levaram a empreender a grande viagem dos desesperados.

Foi impossível obter de nossos informantes a narração de todos os infortúnios pessoais que conduziram Uirá ao desespero. Talvez estivéssemos exigindo infortúnios demasiados, a gosto de tragédia, quando cada ser humano tem sua própria medida de desengano. Verificamos que uma epidemia de gripe assolara a aldeia, matando muitos, inclusive um filho seu que se fazia rapaz. Uirá começou, então, a percorrer os caminhos prescritos pela tradição tribal para os infortunados, ficou iñaron.

Essa expressão Tupi, que tem sido traduzida por raiva, cólera, indica para os índios Urubus um estado psicológico de extrema irritabilidade, que exige o mais total isolamento para ser debelado. Desde que alguém se declare iñaron, é imediatamente abandonado por todos, ficando com a casa, os bichos e toda a tralha à disposição para o que lhe aprouver. De ordinário cura-se rapidamente quebrando potes, flechando xerimbabos ou, nos casos mais graves, cortando os punhos de rede e derrubando a própria casa. Quando passa o ataque de ódio feroz, voltam os parentes como se nada houvesse, reconstrói-se o destruído e a vida prossegue. [...]

Uirá, com a morte do filho, declarou-se iñaron, foi abandonado por algum tempo, agiu como se espera dos raivosos e mais tarde voltou ao convívio de sua gente.

Mas logo se viu – segundo deduzimos dos relatos – que não se tratava de um simples caso de iñaron, pois pouco depois Uirá caía num estado cada vez mais profundo de prostração, de tristeza e desengano. Estava apiay, conforme nos disse Katãi, a viúva. Decidiu então experimentar outro caminho prescrito pela tradição tribal para as grandes crises morais: transformar as tensões emocionais em furor guerreiro e sair pelas aldeias aliciando outros desenganados para uma surtida contra os índios Guajá. [...] Mas nem assim alcançou o equilíbrio emocional que buscava, continuou “apiay, pensando no filho morto”.

Haviam-se esgotado para Uirá as fontes do gosto de viver e nenhum consolo ou alívio lhe trouxeram as formas tradicionais de reconquistar o controle emotivo: o isolamento e a guerra. Mas tinha ainda energia para uma última empreitada, aquela de que dão notícia a tradição oral e os mitos tribais: a lenda dos heróis que foram vivos ao encontro de Maíra, o criador.

Essa é a empresa mais terrível que um índio Urubu pode se propor. Nada indica que Maíra acolha benevolamente seu povo em sua morada. As lendas só se referem a essa possibilidade para enumerar detidamente as provações terrificantes que devem experimentar os que ousam a façanha. [...]

“Os Karaiwa falavam, falavam. Uirá não escutava, não entendia nada. Uirá falava, falava, gritava que ia ver Maíra, mas ninguém entendia nada. [...] Dissemos a Uirá que aquele não podia ser o caminho de Maíra, mas ele sabia que era.” [...] Era a experiência mais terrível de Uirá. Até então deve ter identificado a incompreensão e os espancamentos que sofrera dos brancos como as provações míticas que esperava e aceitava. [...] Agora era a descrença de sua própria gente que devia enfrentar. [...]

O último capítulo é a viagem de volta pelo rio Pindaré e, já ao fim, diante do caminho de casa, o suicídio pela forma mais terrível aos olhos dos índios Urubus. Contudo, Uirá sempre cumpriu o destino que se propôs. Não podendo ir vivo ao encontro de Maíra, sempre foi, porque a morte também era caminho para ele.”

Darcy Ribeiro (“Uirá Vai Ao Encontro de Maíra”, 1957)

01. Além De Mim

 

"Mais uma das canções que escrevi pensando no interlocutor como minha filha, apesar de valer para a reflexão de qualquer um. É uma mui honesta reflexão sobre a experiência de ser pai - mas não apenas, de outras dimensões da minha vida até aqui também - e vê-la crescer, reaprendendo tanta coisa sobre mim... Foi a penúltima letra a ser finalizada, apesar de ter o arranjo todo na cabeça já há algum tempo. O título é propositalmente o mesmo do álbum anterior, para ligá-lo a este, sendo a sua consequência." ("Entrevista - Iñaron")

Além de Mim

Sorte a minha te ver aprendendo a andar, me faz reaprender a caminhar
Te ver experimentando a sua liberdade me faz refletir sobre o espaço que ocupo
Tua força destruidora que desata o caos é o que gera uma nova ordem
Tua força criadora, que avalia o mundo, me faz reavaliar o valor de tudo

Vendo-te crescer assim cresço também pra além de mim

Já tive pressa, hoje tenho mais paciência - tive força e ainda tenho preguiça
A prudência que me recomenda ser mais circunspecto, medir meu impacto
Caminhei o deserto mais desolado, de um ar mais puro hoje estou mais perto
Que ao menos minha morte me seja leve e me chegue no tempo certo

Se eu cresço assim – cresça também pra além de ti!

Tive que perdoar-me os meus medos, meus erros e aceitar que sou o que eu posso ser
Tive que perdoar o meu pai, a minha mãe, meu irmão – e amar a minha solidão
Tive que compreender que o orgulho é um fardo que eu carrego por pura vaidade
E quem quiser ascender às mais altas montanhas tens de cortar tuas asas de chumbo

Apesar de darem as minhas pernas passos mais largos, meus ossos doem
Apesar de alcançar com minhas mãos frutos mais altos, minha queda dói mais
Apesar de doer-me o joelho, ainda tenho fôlego – morrerei de pé!
E esta canção é a inscrição sobre a minha porta: quem aqui entra, me honra; quem não, dá-me prazer!
Vou me alimentar corretamente e evitar o afeto que me faz impotente
Cuidar da dieta e superar o que estiver entre mim e minha meta
O inominável em mim, chamei-o indizível – e indomável é a sua força
Há em mim um vulcão que é a minha vontade - pra onde aponta a seta do desejo

Vendo-te crescer assim cresço também pra além de mim
Se eu cresço assim – cresça também pra além de ti!

Ó, destino, me deixe partir – já não sei mais se tenho força, nem sei mais pra onde ir...
Ó, desejo, como me cobra em permanecer vivo pra findar a minha obra!
Ó, canto jubiloso – me afaste de todo tormento lamurioso!
Ó, ferida lambida, por ti cresceu minha força – é hora da partida!

02. Hatüey

 


"É um ataque ao estado da moral hegemônica. Enquanto não ataquei o cristianismo, e tudo o que é podre que dele escorre, eu não pude ser honesto comigo mesmo - isso foi o que fiz durante um tempo. Logo eu, que me declaro ateu com convicção e boa-consciência desde a infância... Mas isso, claro, não poderia ter passado impune. O único momento em que baixei a guarda para esse veneno do espírito, o cristianismo, foi quando em um relacionamento breve e febril com uma certa garota lá de Goiânia... um sinal do meu próprio desequilíbrio de então. É uma valsa, mas era pra ser também uma referência à musicalidade indígena, que vocaliza dissonâncias que apavorariam um coral casto de qualquer igreja. Que assim seja! Na abertura, evoco uma imagem de uma passagem do Zaratustra; ao final, a história do lendário índio da América Central que se recusou a ir para o ~paraíso~ junto aos espanhóis, preferindo a fogueira... Estes índios orgulhosos! Bem assemelham-se me aos gregos clássicos - apenas a revolta daqueles escravos de má-consciência, apenas aqueles cristãos, que um dia ainda servirão de pesar e lamento por sobre a história da humanidade na Terra, poderiam fazê-los tombar. Que aprendamos a voar mais alto, pois!" ("Entrevista - Iñaron")

Hatüey

O passo de tudo que é honesto fala
Mas meu sapato é novo
E me dá um calo
Por isso, o meu passo cala

Paguei o que lhe era devido
Mesmo sem dever-te nada
Hoje não mais me endivido
Minha vida não é negociada

Está abolido todo juro
Pois, toda a Terra é sagrada
Com meu corpo em chamas, conjuro
É purificada a minha casa

Hoje prescindo do medo
Sigo sozinho minha estrada
Cheio de verdades nascidas
Do rancor de uma vaidade ferida

Se a estima que tenho de mim
Concorrer com as minhas falhas
Melhor seria o fim
Se, o coração, me retalha

Não quero ser um mártir
Mas também não sou covarde
Se eu perecer pelo que sou – que má sorte!
O superhomem vingará minha morte!

Pois, tenho um dever
Mas nenhuma obrigação
Tenho muitos motivos
Mas nenhuma razão

Como dizia o índio
Ao apelo à sua conversão
Pra padecer no paraíso
O falso templo cristão:

Pergunto, pois, hei de viver
Neste céu junto aos espanhóis?
Sim? Então, hei de arder
Ao fogo de mais de mil sóis.

03. A Minha Casa



"Foi uma das primeiras a serem escritas, num fluxo turbulento de letra e música, cada qual vinha a cada curva formando esse rio largo que deságua num mar de 2 minutos de barulho antes do silêncio. Tem tantas referências do Zaratustra que eu aguardo algum leitor - lanço o desafio - vir torná-las públicas! É um dos meus melhores arranjos de guitarra, melodia e lírica. Um feito e tanto de canção, do tamanho do meu orgulho." ("Entrevista - Iñaron")

A Minha Casa

A minha casa é qualquer lugar
Em que as paredes puderem testemunhar
A minha fortuna e a minha ruína
Em busca do elixir vou cumprir a minha sina

O meu palácio onde posso ordenar
Que um silêncio altivo venha me adornar
O meu banquete pro meu paladar
São livros e discos que eu possa devorar

O meu casulo de onde devir cigarra
Metamorfose que faz da guitarra asa
O meu cantar cresce em mim pra voar
E ao romper o escudo, estou pronto pra tombar

A minha concha pérola esconde
Brilho lustroso por entre visco asqueroso
Se eu findar-me em vitrine disposto a ornamentar
Como vou lamentar entre os porcos chafurdar?

O leito em que deito desafiado por sonhar
É de pedras que arrasto pelas curvas que escavo
Serei profundo ou apenas a água que enturvo?
Quando vou decantar no abissal do mar?

A minha caverna na minha montanha
Aqui guardo minhas cinzas, o desprezo me acompanha
Quando vou levantar com o raiar da Aurora
E jurar ao sol: “esta é a minha hora!” ?

De tão são, até perdi a razão!
De tão santo, até perdi o encanto!
Tão veraz que cri uma vez mais
Na magia em que até a ciência acreditaria!


O lugar pra onde quero ir – o lugar que preciso
Se ele não existe, então, terei de criá-lo
O lugar que existe a partir do momento em que crio
É o lugar em que eu finalmente caibo

 

04. The Convalescent



"Os pensamentos precisam escapar do corpo de alguma forma... Alguns segredos, incontíveis como são todos, merecem ser ditos em códigos - numa outra língua que poucos dominam, deveras! E, generoso que sou, lego à humanidade tal petardo de versos em língua inglesa. Tais foram brotando de rimas zombeteiras, que ajuntava por pura diversão, até que crescera uma árvore tenebrosa que lançou por sobre mim a sua sombra. Nela subi e cheguei aos céus; dela desci com o sentido da Terra. Não tive revisão da letra. Incorri em algum equívoco gramatical, alguma questão de ordem de coesão e coerência? Sejam generosos, amigos... se eu merecer!" ("Entrevista - Iñaron"

The Convalescent

I tried to fit in the husband shape
And ran before I couldn’t escape
I could not hide how I was scared
Despite, grateful for the time we’ve shared
I know well how affection is scarce
But I could not stand with that farce
I’m back off the rail track so now I’m free
Farewell, I’ll try to be me!

I ascend to heaven again! Oh, how lucky I am!
I descend with the sense of the Earth! Oh, I rebirth! 


I went beyond my alma mater
I overcame the sun, my father
When I work with concentration and focus
I can reach nature’s magnum opus
I burnt my mouth by kissing those lips
And became full by grabbing those hips
I worship goddesses: don’t take me wrong
I’m a mess and this is not my tongue

Now that I’m nurtured I can sow my seed
Who would dare to drop my speed?
I raised my sword and cut off the curse
Knew the word and wrote the verse
Tempered with the fire of the will to power
Dressed in red to light my desire
My heart sings gently and tells me thus:
- Can you see? “Alles ist im fluss”!

Tradução:

O Convalescente

Tentei me encaixar no papel de marido
E corria antes que não pudesse escapar
Não pude esconder o quão estava assustado
Apesar de grato pelo tempo que passamos
Eu bem sei o quanto o afeto é escasso
Mas não poderia manter aquela farsa
De volta para dos trilhos, então estou livre
Adeus, vou tentar ser eu mesmo!

Eu ascendo aos céus novamente! Ó, quão sortudo eu sou!
Eu descendo com o sentido da Terra! Ó, eu renasço!


Eu fui além da minha alma mater
Superei o sol, meu pai
Quando trabalho com concentração e foco
Posso alcançar a magnum opus da natureza
Queimei minha boca beijando aqueles lábios
Tornei-me pleno agarrando aqueles quadris
Eu adoro deusas: não me leve a mal
Sou uma bagunça e esta não é minha língua

Agora que estou nutrido posso semear minha semente
Quem se atreveria a diminuir minha velocidade?
Levantei minha espada e cortei a maldição
Conheci a palavra e escrevi o verso
Temperado com o fogo da vontade de poder
Vestido em vermelho para acender meu desejo
Meu coração canta gentilmente e me fala assim: 
- Podes ver? "Tudo está em fluxo!"

05. Do It Yourselfie

 

"É da época do "Além de Mim" (2014). A última estrofe já estava escrita há muito tempo; tinha toda a música na cabeça, mas não me satisfazia nada do que colocava em palavras... não estava claro nem mesmo para mim o que queria ser dito. Geralmente, o tempo cumpre bem esse papel de desanuviar o céu; tornar claro o escuro; trazer à tona o abissal. É a canção mais política do álbum, a 3ª pessoa na letra não fala sobre mim, especificamente, apesar de rir-me com sua autoironia em alguns momentos, tenta captar o espírito de nossa época e apontar o caminho para transcendê-lo." ("Entrevista - Iñaron") 

Do It Yourselfie

Ele não bebe água da pia, não transa sem camisinha,
Já nem fuma, um careta e agora até evita a bebida
Ele anda na linha, o banco a ele financia
Parcela o viver, sem juros, tudo em dia

Não pensa fora da caixa, vê-se pela sua faixa
É um mártir de Marte em uma marcha murcha
Paixão triste o mobiliza, só assim que vai pra rua
Tira selfie com a PM e defende a ditadura

Odeio estar onde estou – Não estou nem aí!

Quando nos alienamos
Servimos a propósitos que nos escapam
Dar cabo da sua vida é um favor que te faço
Agradeça-me no inferno, escravo! 


Ele queimou seus neurônios e a sola do sapato
E as pontas dos dedos, a pele e a língua
O poder e a exploração são o que ele justifica
Um cativeiro cativante, um fruto da frustração

É a procissão dos zumbis que não buscam miolos
Contentam-se com salários, em serem apenas tijolos
Mas, todo trabalho é forçado quando existe um patrão
Que liberdade pode haver em dizer “sim” ou “não, senhor”?

Odeio estar onde estou – Não estou nem aí!

Acordar no meio de um sonho
Pra me arrumar e ir pro trabalho
Acordar de um sono profundo
Que porra de vida é essa, caralho?!

06. Menina Do Rio



"Um belo exercício de estética no qual redimo Caetano por servir de experiência audiofônica aquele Estado que é um dos mais monstruosos, Israel. Quase joguei essa canção fora de última hora. Não o fiz por pura vaidade - adorei as imagens que nela lancei e a rima do refrão não se repetiria nunca em outro contexto. Sobre ele, um silêncio obsequioso. Fundo de lago é enlameado, todos sabem. Foi ali que me lancei, no lamaçal dos enganos. Em todo caso, uma ótima canção, em forma e conteúdo, pra mostrar a minha força." ("Entrevista - Iñaron") 

Menina do Rio

O sol queimava e a pele me ardia
O lago me enlaçava com a sua água fria
As horas passavam tais quais ardilosas ninfas
E eu sublimava que é política a psicologia
E a menina do rio ria!

Minhas braçadas, passagens de ida
Minhas remadas e até as minhas rimas
Lançadas com fúria e alegria
E a menina do rio ria!

O seu reggae tocava – o punk me movia
Eu estava em casa – o acaso me alivia
A dissonância encarnada qual magia
A aparência aprazível apolínea
A menina do rio ria!

Menina do rio, dragão tatuado
Nas costas; biquíni que bem te protegia
Da lambida do sol, pleno e que ascendia
E eu comigo também me ria!

E quem diria? A menina do rio ria!
E o seu riso era uma ode a Dionísio
E eu, que um dia viria a encarnar o devir
Aprendi a rir, amigos! Aprendi a rir!
Aprendi a rir, pois, eu já sabia mentir.

07. Eu Só Sei Ser Quem Eu Sou



"É a mais curta do álbum, não tem introdução - quer ser direta, objetiva, honesta consigo mesma. Ali estou me redimindo - aliás, no álbum todo. Os meus enganos, minhas recusas, minhas fraquezas... É onde coloco o verbo no imperativo, reencontro a mim mesmo na potência da minha vontade: cala-te, vaidade jocosa; ironia vulgar! Alguns poderiam se opor dizendo "eu sei ser quem eu quiser". Noves fora a desonestidade dessa falácia, o que dizem os outros, vejam bem, não me interessa." ("Entrevista - Iñaron") 

Eu Só Sei Ser Quem Eu Sou

Ser honesto com os outros é mera consequência
De ser honesto para consigo mesmo
Se um pedaço de mim morrer
Outro, então, terá de nascer
Sofrer é tentar vestir-se de uma
Roupa que não cabe em você
E se ando no escuro, veja bem, este é
O meu caminho, ninguém precisa trilhá-lo

Tenho uma herdeira e tenho uma meta
Quero que minha morte me chegue na hora certa
Seguir além e acima – estou perto!
E assim, viver a vida no tempo certo
Pois,
Eu só sei ser quem eu sou! 


A: Ora, vejam só! Mas que grande coisa: Um metido a nietzscheano, ou nietzscheano metido, tanto faz, no alto da sua torre de marfim aqui, no final do PSUL... Tome jeito, tome rumo, crie vergonha na cara rapaz!
B: Cala-te! Você me lembra a voz jocosa da minha vaidade, cheia de ironia vulgar. De toda forma, obrigado por não me deixar esquecer o que há em mim e que eu devo combater. Pois, eu sei muito bem quem e o quê eu sou e porque estou aqui!

08. A Ponte



"Uma ode a Zaratustra. Evoca novamente a mitologia grega e todo o seu universo de sentidos - absolutamente diverso da miserável moral hodierna. Nós somos mesmo um fim: o tempo, aquele rei, dá testemunho do nosso decaimento, mas não vou caluniar o sentido da Terra! Falando da música, o seu ritmo mesmo evidencia o trotar de quem avança por sobre um caminho sem volta. Apenas navegar..." ("Entrevista - Iñaron")

A Ponte 

Conhece-te a ti mesmo: torna-te quem tu és!
Lembre-se dos Titãs e de sua altivez!
És forte como Atlas, tome o mundo nas costas!
És visionário Prometeu, frua o destino que é teu! 


Pois, eu só posso te amar como uma ponte por sobre o mar
Apenas navegar em um rio turvo que ainda vai desaguar
Em tormento, um esquecimento, uma roda que gira sobre si
O vento que vai derrubar tudo o que há de carcomido nesses galhos!
A luz!, o calor! e o choque de um raio que vem nos partir
Para além de mim, para além de ti, por amor ao que foi e ao que deve vir
Pois, o homem é um fim – a vontade de morte sobre os ventos do norte
Triunfa por pouco – reconhecem os loucos – por um fio de ouro dos ventos vindouros
Mas tudo está em fluxo e somos um reflexo da força criadora de beleza do mundo
E até aquele que erra haverá de sentir-se grato pelo sentido da terra!
Pois, a história é uma mãe generosa e Gaia é uma deusa risonha!

09. Aurora

 

"O "batizado" lírico de minha filha. Aqui falo dela da forma mais direta. Estávamos no litoral sul da Paraíba quando os primeiros versos, já dentro dessa métrica, foram soprados pelo mar para dentro da minha cabeça enquanto via Aurora absolutamente inocente, brincando na areia... De repente, realizei a importância de um ato simbólico que, em signos, a protegesse, resguardado de toda moral mesquinha; de toda má-consciência; de todos os afetos tristes; de todo o cristianismo, enfim." ("Entrevista - Iñaron") 

Aurora

Eu te batizo em nome do espírito santo da vida
O ser primordial que no fundo de todos habita
Aquele que vive nas matas sob a luz do grande meio-dia
Que ensinou a astúcia à águia e, com coragem, nutria a mim

Eu te batizo no templo do espaço aberto, o cerrado
Deixai aos covardes as covas, as suas naves escuras
Pois, as verdades eternas habitam a natureza-divina
Eu te batizo em nome da antiga deusa latina

Receba de mim este signo: da onda do mar, do mergulho
Do amor, da dor, do orgulho – que à terra eles sejam dignos
Que são sinuosos os caminhos e os oceanos profundos
Há conhecimento do mundo: que se eleve acima de tudo

Tu, que és feita da força da luz que o dia anuncia
O calor, o clamor e o clarão – vento dos tempos que virão
Tu que vieste na mais dourada hora de minha vida
Devo chamar-te de Aurora, monumento à minha vitória,
Minha filha.
"A criança é a inocência, o esquecimento, um novo começar, um brinquedo, uma roda que gira sobre si, um movimento, uma santa afirmação.
Sim, para o jogo da criação, meus irmãos, é preciso uma santa afirmação: o espírito quer agora a sua vontade, o que perdeu o mundo quer alcançar o seu mundo."
("Das Três Transformações", Assim Falava Zaratustra, Nietzsche)


10. Elegia



"Foi a última a ser escrita, apesar de, como ocorrera com outras, ter já seu arranjo determinado. Faço uma digressão por sobre a minha própria história: voltei ao tempo em que morava na asa sul; voei de volta à asa norte; sem deixar de passar pela minha primeira experiência no Guará. São versos muito figurados, convidam a todos à reflexão, todavia, não deixo de fazer a minha própria: sobre os contextos de minha vida que me trouxeram até aqui, sobre os caminhos, curvas, desenganos... Arrisco até um verso autoral em alemão - até onde sei, não incorri em nenhum erro estrutural - com a humildade de quem quer aprender, com o orgulho de quem tem coragem de tentar. O refrão é de um aforismo que rascunhei na época em que estava a ler o "Humano, Demasiado Humano" - sugere um caminho para a autosuperação. Um áureo tempo, um sopro de um vento que vem do futuro." ("Entrevista - Iñaron") 

Elegia

De onde eu vim havia a Cortina de Ferro e o Muro de Berlim
Para onde vou não há ouro de tolo nem ouro de Moscou
Aquilo que hoje sei faria de mim menos que um escravo e mais que um rei
Hoje professor: cabe a mim libertar-me de tal fardo opressor

A minha espada, a minha espada abriu a fenda
O oco no peito – olhara dentro de mim o abismo
Fugiu de medo – fiz ele olhar-se a si no espelho
Derramo o vinho e rio – uma ode a Dionísio!
Tinto de chumbo – questiona a minha ferrugem exposta:
Como condescendi com aquilo em que nunca cri?
Eu quero a vida – não há vida após a morte
Não há saída – hei de abençoar este dia!

Mira em direção ao futuro
Com o arco do conhecimento
E enterra a flecha-homem
No peito do próximo século
Tua chama luze o escuro
Teu corpo é um experimento
Da bioquímica do afeto
Além do errado e do certo
Tudo é uno e possível
Em si nada é dado acabado
Há tanto que enternecer
Na lança que é o vir-a-ser
E este signo nunca esqueça:
Faltando em que se apoiar
Pra se elevar, o esquecimento
Escale a sua própria cabeça

No lamaçal dos enganos não pude evitar me enturvar
Sou apenas humano – ainda não sou um mar
Meu ouro reluz, pois, de nobre metal que eu me fiz
Mas a morbidez seduz - afasto-me de quem me quer pregado na cruz!

O meu escudo e o meu cajado, deixei tudo
Pra depois, fui andarilho no Guará II
Pois, tive sorte: conheci a W3 Norte
E o céu azul quando cruzei a L2 Sul
No Lago Norte, eu lecionei e vi a morte
E ainda resiste nos trapos a frase de Nietzsche
Tal qual estrela que brilha e que morre
Todo o dia, mas à noite renascia!

Na adolescência do século, na infância do milênio
Neste instante eterno que eu vislumbro em silêncio
Ele esteve hibernando e de um sono profundo desperta gritando:
“Vogelfrei fliegt zum licht, fliegt mit lese Nietzsche”
-Übermensch! –
-Este sou eu!