quinta-feira, 30 de julho de 2015

Iñaron (2015)


Juliano Berko


(2015)
Todas as Letras e Todas as Músicas; Guitarras, Baixo, Bateria e Teclados (Piano Eletrônico 2.5), Vozes: Juliano Berko. Gravado entre Março e julho de 2015, Guará II, DF. Fotos (Capa e Contra-capa): Erupção do Vulcão Cabulco, Chile, abril de 2015. CD: “Hatüey”, índio lendário da América Central, em relevo no Capitólio de Havana, Cuba. Hasta la victoria, siempre!

Juliano Berko, 2015.

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Iñaron:

“Nosso tema é a narração e, no possível, a interpretação dos fundamentos sociais e mítico-religiosos das experiências de um índio Urubu que saiu à procura de Deus. As desventuras de Uirá que, em novembro de 1939, depois de uma série de desenganos, se matou na vila de São Pedro, no Maranhão, lançando-se ao rio Pindaré. [...]

Uirá não arrastou seu povo à sua aventura, nem foi, em qualquer momento, reconhecido como um profeta ou messias. [...]

Uirá era tão somente um chefe de família, um líder de sua aldeia. Certamente, mais emotivo que o comum, porque se deixou afetar mais que os outros por desventuras que pesaram sobre todos, mas só a ele levaram a empreender a grande viagem dos desesperados.

Foi impossível obter de nossos informantes a narração de todos os infortúnios pessoais que conduziram Uirá ao desespero. Talvez estivéssemos exigindo infortúnios demasiados, a gosto de tragédia, quando cada ser humano tem sua própria medida de desengano. Verificamos que uma epidemia de gripe assolara a aldeia, matando muitos, inclusive um filho seu que se fazia rapaz. Uirá começou, então, a percorrer os caminhos prescritos pela tradição tribal para os infortunados, ficou iñaron.

Essa expressão Tupi, que tem sido traduzida por raiva, cólera, indica para os índios Urubus um estado psicológico de extrema irritabilidade, que exige o mais total isolamento para ser debelado. Desde que alguém se declare iñaron, é imediatamente abandonado por todos, ficando com a casa, os bichos e toda a tralha à disposição para o que lhe aprouver. De ordinário cura-se rapidamente quebrando potes, flechando xerimbabos ou, nos casos mais graves, cortando os punhos de rede e derrubando a própria casa. Quando passa o ataque de ódio feroz, voltam os parentes como se nada houvesse, reconstrói-se o destruído e a vida prossegue. [...]

Uirá, com a morte do filho, declarou-se iñaron, foi abandonado por algum tempo, agiu como se espera dos raivosos e mais tarde voltou ao convívio de sua gente.

Mas logo se viu – segundo deduzimos dos relatos – que não se tratava de um simples caso de iñaron, pois pouco depois Uirá caía num estado cada vez mais profundo de prostração, de tristeza e desengano. Estava apiay, conforme nos disse Katãi, a viúva. Decidiu então experimentar outro caminho prescrito pela tradição tribal para as grandes crises morais: transformar as tensões emocionais em furor guerreiro e sair pelas aldeias aliciando outros desenganados para uma surtida contra os índios Guajá. [...] Mas nem assim alcançou o equilíbrio emocional que buscava, continuou “apiay, pensando no filho morto”.

Haviam-se esgotado para Uirá as fontes do gosto de viver e nenhum consolo ou alívio lhe trouxeram as formas tradicionais de reconquistar o controle emotivo: o isolamento e a guerra. Mas tinha ainda energia para uma última empreitada, aquela de que dão notícia a tradição oral e os mitos tribais: a lenda dos heróis que foram vivos ao encontro de Maíra, o criador.

Essa é a empresa mais terrível que um índio Urubu pode se propor. Nada indica que Maíra acolha benevolamente seu povo em sua morada. As lendas só se referem a essa possibilidade para enumerar detidamente as provações terrificantes que devem experimentar os que ousam a façanha. [...]

“Os Karaiwa falavam, falavam. Uirá não escutava, não entendia nada. Uirá falava, falava, gritava que ia ver Maíra, mas ninguém entendia nada. [...] Dissemos a Uirá que aquele não podia ser o caminho de Maíra, mas ele sabia que era.” [...] Era a experiência mais terrível de Uirá. Até então deve ter identificado a incompreensão e os espancamentos que sofrera dos brancos como as provações míticas que esperava e aceitava. [...] Agora era a descrença de sua própria gente que devia enfrentar. [...]

O último capítulo é a viagem de volta pelo rio Pindaré e, já ao fim, diante do caminho de casa, o suicídio pela forma mais terrível aos olhos dos índios Urubus. Contudo, Uirá sempre cumpriu o destino que se propôs. Não podendo ir vivo ao encontro de Maíra, sempre foi, porque a morte também era caminho para ele.”

Darcy Ribeiro (“Uirá Vai Ao Encontro de Maíra”, 1957)

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